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domingo, 4 de dezembro de 2011

Um Velho


Restaram-me apenas alguns dentes e lembranças. Enfim a morte rompeu com o silêncio e a morosidade dos meus dias. Oitenta e sete anos e morria só. Três casos de amor durante toda a existência e pouca coisa para contar. Meu companheiro, um peixinho dentro de um pequeno aquário, guarda um olhar misto de paciência e complacência para mim. Sabia da inveja que sentia da sua condição. A vida no aquário era menos enfadonha que fora dele.
Na minha idade é tolice amar a qualquer coisa. Não existe sublimação no amor. É puramente material, apego ao mundo. O coração deste velho tornara-se cada vez mais varicoso. Três amores em oitenta e sete anos. Um espelho, pouca luz e no retrato um sorriso amarelo. Três amores e nem as dores foram muitas. Cada vez mais escassas, pareciam novidades suas ocorrências. Três amores e poucas lembranças. Estas como um filme dos tempos silenciosos do cinema. Uísque, um vaso com uma samambaia na mesinha do terraço, um calendário de 1994 e apenas três amores. Um cachimbo apagado, o fumo mofado, um furo no telhado – lembra-me o inverno – e três amores.
Uma conversa com o padre Antonio foi o diálogo mais denso de que me lembro. Confessou-me ele ter sido o seu mais bem pregado sermão. Disse-me o padre não conceber a ideia de que o homem é mais próximo de Deus, pois se assim pensasse nosso Senhor, queria que negássemos nossa própria natureza. Pôs-se a criticar o divino ofício e seus colapsos mentais:
- Deus errou quando criou o mundo e quando tentou corrigi-lo. Mandou este para o inferno e pôs-se a criar outros mundos por aí buscando uma perfeição não alcançada aqui. Somos seus bichinhos de testes. Cobaias divinas, por certo. Sentenciou o santo homem.
Do alto do meu cristianismo embriagado após uma garrafa de uísque dividida com o velho sacerdote, disse-lhe:
- Deus criou o homem a sua imagem e semelhança. Não é o que diz o arcaico testamento?
- Péssima escolha vir como homem e ainda por cima exigir ser amado por todos.

Este foi o fim de mais um caso de amor. O último. Aquele que nos sobra como prêmio de consolação por não sobrar mais porra nenhuma. Findou-se como a bebida. Doeu-me como a ressaca.
Os santos posicionados em cima do criado mudo me olhavam como de costume. Sempre achei que eles quisessem dizer algo, mas nunca entendia ao certo. E só agora próximo ao último ato os alcanço. Olhavam por mim com certeza. Um olhar de piedade pelos conselhos não escutados e minha impaciência de viver. “Menino, o que realmente buscas com tanta prece?” pareciam me perguntar. Que vergonha. O tempo se fez presente. Gastei-o em preces e lamentos, nas filas das hóstias sagradas pelo o corpo e sangue do santo filho. Minha insaciável antropofagia espiritual. O tempo se faz ausente.
            Outro dia um poeta amigo meu escreveu-me em verso uma carta. Um único verso, pois única, segundo meu amigo, era a sua vida. E aquela carta trazia-a consigo. Um verso de despedida, de desistência de si mesmo posto que carregava sua mais significativa compreensão de si. Era como se me perguntasse: “e agora, amigo, o que faço eu de mim?” Estava agora completamente exposta a sua nudez, muito embora sem vergonhas nem tabus. Pleno de si acenava em minha direção – se ia?
Lembrei-me de nossa última conversa em que me disse para jogar fora tudo o quanto fosse de livros de poemas ou o que me fizesse pensar em poesia na minha já empoeirada biblioteca.
- Limpa o rabo com esse Neruda, Velho! Passou esse tempo, não vês?
- Mas o que é isso? E o perfume dos seus versos? As náuseas de suas imagens marinhas!
- A poesia, Velho, está naquilo que não se disse no poema. Está no silêncio. Naquilo que não pode se descrever com sutis ou fortes palavras. A palavra, aliás, é o cárcere da imagem; o tormento da poesia. É o barulho ensurdecedor; a eternidade de algo que já foi. Sua vida após a morte. Compadece-te da poesia, Velho, coitada!
O silêncio foi seu verso na carta. Foi sua vida. Seria seu fim também. Meu segundo amor morria. Tudo o que eu achava que era poesia foi apenas barulho. Um grande engarrafamento de signos a buzinar ferozmente contra a paz. Enjaulamos imagens e nos entretivemos em suas nuanças, suas danças, em seus passos, seus vôos quase sempre para o nada e achávamos que eram para além. A morte mesmo não relativiza assim. Traz verdades e mentiras claras. Morre-se de amor, dizem. Morre-se de paz também.
Era um bosque encantado. Todos os bosques, a meu ver, eram encantados. Ao menos deveriam ser. E neste encantamento morava meu primeiro amor. Quente e inquieto como todos os primeiros amores. Meu primeiro amor trazia consigo um beijo morno de verão que esquentava minha alma. Eu tinha uma alma. Era óbvio que tinha. Para se reconhecer o primeiro amor é necessário ter uma alma. Ela se chamava manhã e todas as noites eu a esperava.
Eu era menino e tudo o que era feliz irradiava sol, cheirava sol. Sonhava todas as noites com ela. E eu a esperava perfumada, banhada em suas cores matutinas. Queria seus mistérios, suas novidades, seus desafios. Eu era apenas um menino, até que tudo ficou preto e branco. De repente era noite.
A noite trouxe frio e desesperança, enturvou a manhã. Hoje o que me resta são lembranças de desventuras amorosas. Eu tinha cores, fé e poesia. Hoje apenas alguns dentes me acompanham e um peixe complacente assiste ao meu fim. O olhar do peixe é o mesmo olhar dos santos. Perdoai, então, pela a vida em vão cheia de crenças! Pelos poucos amores e pela miséria sentimental que carrego comigo agora na hora da minha morte! É chegada a hora do último ato. Sobem as cortinas e uma luz branca me clareia o rosto. É o momento em que acaba a tinta da pena e há tantas páginas em branco! 



Dodô Cavalcante

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